A migração nordestina e os povos indígenas
Entre as décadas de 1950 a 1980, ocorreu uma grande migração do Nordeste brasileiro para as grandes metrópoles do Sudeste, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro. Vamos falar aqui da região de São Paulo, que teve sua migração vinda principalmente da Bahia e de Pernambuco. A migração foi uma oportunidade que o nordestino viu de buscar alternativa à grande miséria social em que se encontrava. Fala-se muito da seca nordestina, mas, na verdade, o grande problema eram as cercas dos fazendeiros, que dominavam as terras e obrigavam o nordestino e, principalmente, os sertanejos a viver um sistema de exploração profunda, com altas cargas de trabalho e com um salário miserável, beirando à escravidão. Não existia trabalho com um mínimo de dignidade; eles eram tratados como propriedade pelos fazendeiros (chamados de Coronéis); a fome era predominante e o futuro, inexistente.
Aí, uma parte do povo do Nordeste enxergou nessa migração uma das poucas saídas para se libertar do jugo dos Coronéis. E, ao mesmo tempo, as grandes empresas construtoras viram a oportunidade de mais mão de obra barata. O povo nordestino construiu São Paulo a sangue e suor, e, mesmo assim, colheram preconceitos profundos, sendo tachados de vagabundos e preguiçosos. Uma grande ironia, já que os nordestinos construíram São Paulo de sol a sol, trabalhando horas exaustivas e com salários baixos. Mas, onde entram os povos indígenas nessa questão?
A perseguição na Ditadura Militar
O que se esquece é que o povo nordestino é diretamente descendente dos povos indígenas. Além da descendência biológica, tem muita raiz nas culturas, folclores, comidas, falas, etc. Mas uma coisa muito importante na década de setenta é que, com a Ditadura Militar, os indígenas foram extremamente perseguidos e exterminados. No livro O Massacre, de Silvano Sabatini (historiador, antropólogo e ativista da causa indígena), ele nos conta bem essa história e suas consequências. Foram cerca de 40.000 indígenas mortos, muitos também jogados em manicômios. Militares lançavam brinquedos contaminados de helicóptero para as crianças, panfletos pregando ódio da população contra os povos indígenas, disseminados de mentiras. Afinal, um sistema totalitário, que beirava ao fascismo, não podia aceitar tantas diferenças culturais e, principalmente, a liberdade. Afinal, nesses sistemas, o povo é meramente um trabalhador incansável para o Estado, sem direitos ou questionamentos. Essa atmosfera reacionária e perseguidora fez com que os povos indígenas se escondessem, negando suas origens e se misturando aos trabalhadores do campo. Em síntese, nessa época era ainda mais perigoso ser indígena. Assim, esses indígenas e suas famílias, misturados aos trabalhadores, vieram também para as metrópoles em busca de sobrevivência e fugindo da ditadura. Dessa forma, vieram povos como os Fulni-ô, Pankararu, Kaimbé, Kiriri e outros.
A Abertura Política e a Constituição de 88
É nesse contexto que muitos indígenas chegaram nas cidades e, com a abertura política e os direitos garantidos com a nova Constituição, eles viram uma oportunidade de buscar novamente seu reconhecimento e seus direitos. Assim, se deu esse novo fenômeno, que são os povos indígenas em contexto urbano (principalmente falando das metrópoles), trazendo consigo novas problemáticas, pois conviviam com o enorme preconceito graças aos estereótipos criados através do tempo. Como, por exemplo, um indígena sem suas vestimentas tradicionais ou um indígena com celular ou carro. Antes, eles não podiam ser indígenas e agora são obrigados a ser indígenas do jeito que a sociedade não indígena os enxerga. Também encontram a problemática de serem aceitos pelos povos que vivem em territórios tradicionais.
E é dentro desse contexto que trazemos uma entrevista com uma grande liderança indígena do Brasil, Cacique Alex Werá Ribeiro, do povo Kaimbé, povo originário da região dos sertões da Bahia, da região de Euclides da Cunha, da terra indígena de Massacará. Nessa entrevista, ele nos conta como se dá esse processo e suas problemáticas. Alex Werá nasceu em Guarulhos, mas foi criado junto à família na terra de Massacará e voltou a São Paulo, onde mora junto a mais de 450 famílias, em Itaquaquecetuba e região, utilizando o parque da região para desenvolver seus trabalhos culturais e rituais. Lutando constantemente pelo resgate cultural e pelos seus direitos históricos como os primeiros habitantes desta terra chamada Brasil. Temos também a participação do escritor e historiador português João Barcellos.
Resolvemos colocar a entrevista na íntegra, pois a riqueza dela não nos permitiu cortar nem uma vírgula sequer. Também temos a voz de Denilza Kaimbé, ativista indígena e Pajé, nascida também em Massacará e migrada para São Paulo com sua família, e Vanuza Kaimbé, professora e liderança, que vive hoje na aldeia Multiétnica (com diversos povos) Filhos da Terra, em Guarulhos, que, apesar de ser dentro da mata, é rodeada pela cidade de Guarulhos:
"Estamos aqui no Parque Itaquaquecetuba. Com Alex Werá Ribeiro, liderança do povo Kaimbé. E vou começar com a entrevista pedindo para ele dar um alô, da história dele aqui, do povo Kaimbé aqui de São Paulo"
Cacique Alex Werá Kaimbé (AW): Sou o Cacique Alex Werá Kaimbé. Cacique do povo Kaimbé no estado de São Paulo, pertencente ao povo oriundo da Caatinga nordestina, precisamente do município de Euclides da Cunha. Lá em Massacará é a minha aldeia, demarcada desde 1934. Hoje, estamos aqui em São Paulo, com cerca de 450 famílias Kaimbé, vindas através do processo migratório, onde nós, nordestinos, tanto indígenas como não indígenas, sempre buscamos a melhoria de vida. O Sul sempre foi uma localidade que abrangeu todas as culturas, e hoje não é só o povo Kaimbé, mas existe uma variedade de povos aqui no estado de São Paulo. Para mim, está sendo uma alegria participar desse projeto e agradecer a toda essa dinâmica.
Alex Goulart (AG): Certo. Fala um pouco para mim também sobre os Kaimbé em geral, assim, da cultura Kaimbé, as crenças, os rituais.
AW: Então, rapaz, porque hoje, quando você fala de cultura, é impossível falar da cultura do povo Kaimbé sem tocar também em outras culturas. Hoje, estamos falando de 305 povos, né? O Brasil não é composto por um único povo. Nós somos 305 povos falando mais de 205 línguas. Então, a cultura é muito ampla. Nós somos uma cultura entre várias. A cultura Kaimbé é um ponto diferenciado, assim como outras também o são devido às regiões. Por exemplo, nós usamos um cocar de palha e nossos artefatos são feitos de palha. Não utilizamos penas, como em outras regiões, porque utilizamos a matéria-prima que a natureza nos oferece, e a natureza nos oferece muita palha. A nossa cultura tem uma forma diferenciada de canto, de dança, de expressão, porque estamos tratando de 305 povos catalogados hoje. Somos diferentes e únicos por causa das regiões, seja da região Nordeste, Sudeste ou da Amazônia. Mas isso não nos torna menos ou mais do que outros povos e culturas. A cultura Kaimbé hoje traz muito daquilo que temos no Nordeste, mesmo que não tenhamos a matéria-prima aqui. Buscamos a matéria-prima.
João Barcelos (JB): Explique um pouco esse processo obrigatório de migração.
AW: Quando se torna obrigatório, quando se torna obrigação, é quando nós entendemos que nós necessitamos de algo, por exemplo, nosso território sofreu muito massacre na nossa região e nisso, o que aconteceu se tornou obrigatório muitas famílias se mudarem de localidades. Por exemplo, vamos voltar a 1500, existe um processo obrigatório de refugiar em algumas regiões. Por exemplo: a maioria dos indígenas naquela época vivia muito no litoral, hoje no litoral nordestino existe muito pouco aldeias indígenas, porque se tornou uma obrigação fugir do litoral para se esconder no meio da Caatinga, para não perder a vida. Muitas vezes, não apenas a questão do massacre, mas pela necessidade. Nós temos nossa necessidade de evolução, o indígena hoje não abrange só a questão do alimento ou a nossa cultura, nós queremos mais, entendemos que tem algo que é favorável a gente, que a gente precisa. A questão acadêmica só está em outras regiões, tem pessoas que saem do território para buscar conhecimento em faculdades, então se torna obrigação, por que senão teríamos uma política pública para criar esse mecanismo dentro do nosso próprio território. Nós somos obrigados a ir pra cidades buscar conhecimento, isso pra nós é fundamental colocar alguns pontos que ainda é crucial no nosso desenvolvimento social, econômico.
JB: Como se faz o retorno desse conhecimento?
AW: Então! Hoje, por exemplo: Eu nasci em contexto urbano, aqui no estado de São Paulo. E sou pertencente ao povo que mora na Bahia pra você ver, eu nasci, eu sei da minha cultura e sei de que povo eu sou e adquiri o conhecimento, eu estou aqui em São Paulo, criando um movimento. E hoje nós temos o movimento Kaimbé, a única representatividade que nós temos no estado de São Paulo é o nosso movimento. Agora nós criamos um núcleo de representatividade aqui no estado. O que isso influencia dentro do nosso povo? Todos nossos movimentos, passos e conhecimentos influenciam diretamente no nosso território-mãe. A questão acadêmica, muitos jovens que saem do território que vêm pra cidade em busca de conhecimento, ele sente o desejo de retornar para o território, e isso é muito importante e acontece até hoje, e cabe a mim, como liderança, como Cacique, incentivar a tomar esse posicionamento.
JB: Dentro disso que você está falando, fale um pouco sobre dificuldades dos povos indígenas das cidades, das metrópoles:
AW: Hoje nós indígenas temos um contexto muito aberto, pois entendemos que podemos estar onde nós queremos estar. O contexto urbano, ele trouxe para nós uma forma positiva de viver e uma forma negativa. A forma positiva a gente nem toca muito no assunto, pois é coisa boa, o contexto urbano, ele abrange questão de recurso, facilidade de buscar conhecimento, interação em muitas coisas, profissionalização, pra você ver, hoje eu sou mecânico, eu tenho uma formação profissional, pois sou mecânico e funileiro. Isso traz pra mim algo que no meu território não permite a ter isso. A cidade me deu isso. Eu tenho recurso hoje pro resto da minha vida eu estar buscando meu sustento pessoal, dentro da minha casa, o contexto urbano me trouxe isso. Mas só que eu, como indígena pertencente a um povo, a pressão social urbana, isso acaba me pressionando, não é que nós hoje estamos na cidade, nós sempre estivemos na cidade, mas esse conhecimento desse conteúdo da pressão social é que nos apagou, a pressão. Eu sou indígena, mas de que mata, de que região? Sou indígena independente da região que eu vivo. Eu vejo que as dificuldades são muitas, mas eu digo pra vocês o seguinte, a aceitação eu acho que é uma das piores dificuldades que nós temos é nos aceitar da forma que somos.
AG: Essa dificuldade existe dentro dos próprios povos indígenas, que não são da cidade?
AW: Existe! Hoje está bem mais flexível, eu sou indígena em contexto urbano e o indígena de território, sentar para dialogar, isso hoje é mais flexível, mas até pouco tempo, há dez anos atrás, isso era impossível, até no meu território eu tive essa rejeição. Quando eu comecei a falar “eu sou indígena, eu preciso caminhar da forma que sou, como indígena”. E isso muitos territórios não entendiam o que é isso, pois nos territórios eles veem como se nós tivéssemos abandonado. Eu me identificando indígena em contexto urbano, eles achavam que eu traí, que eu larguei meu território e fui pra cidade e abandonei meu território. Mas não se abandona um território, é igual a mãe, ninguém abandona uma mãe, você sempre vai ter sua mãe, você pode viajar pra onde você quiser, mas sua mãe sempre vai ser aquela pessoa, então hoje as dificuldades são muitas, mas muitas vezes isso acaba até nos evoluindo, de busca de estratégia para se quebrar essas barreiras, hoje nós temos espaços na universidade, espaços públicos para se manifestar, nos parques. Hoje nós estamos colocando nosso conhecimento dentro de várias escolas, levando palestras e muitos conteúdos; então vejo que temos avanços. Isso é importante.
AG: Fale um pouco sobre perseguição religiosa.
AW: Perseguição religiosa hoje nós estamos mais imunes a essa situação. Historicamente nós vivenciamos uma perseguição religiosa muito forte, é tanto que descaracterizar os indígenas foi uma das estratégias mais eficaz que a igreja, a teologia de muitas pessoas introduziram dentro dos territórios, as estratégias de nos descaracterizar como sou foi uma estratégia religiosa. Nós tivemos dois ataques eficaz, foi o ataque à bala e o ataque espiritual, onde tanto um quanto o outro foi tão desgastante pra nós, tanto o espiritual como o ataque à bala, porque o matar é também me descaracterizar, tirar minha essência ancestral é me matar do mesmo jeito.
AG: Fale sobre Canudos.
AW: Canudos é muito importante, temos vários relatos, várias matérias, eu vejo que nós Kaimbé, e não apenas nós Kaimbé, os Kiriri, os Tuxá, entre outros povos, também nordestinos, foram influenciados por uma ideologia, naquela época, na passagem do Reinado, da Monarquia para a República, o catolicismo se perdeu muito na questão administrativa, no poder de administração, e nisso surgiram vários Antônio Conselheiros, que usaram uma artimanha de causar um certo conteúdo com o povo nordestino, que se falasse que ia chover mel todo mundo acreditava, pois o povo nordestino sempre foi sofredor, se causou essa ilusão e as pessoas acompanharam Antônio Conselheiro, e um dos povos era o povo Kaimbé, em Massacará, Euclides da Cunha. Que na época da Guerra de Canudos, a cidade econômica da região ficava na rua velha, dentro da aldeia Kaimbé, a igreja predominante na época da colonização ficava dentro do nosso território.
Tem até hoje a igreja no nosso território na rua velha (É a missão dos jesuítas! comentário de João Barcelos) isso!
AG: Como funciona essa igreja, já que o território é de vocês?
AW: Sim! A igreja é ativa, tanto é que tem indígena que organiza todo ritual.
AG: Como vocês lidam com essa relação, pois muitos Kaimbé no Nordeste no sertão são ligados com a questão da igreja, não é?
AW: Sim!
AG: Como vocês fazem essa relação da crença espiritual de vocês ancestral com essa questão, como funciona?
AW: Hoje nós somos muito abertos, pois entendemos que não temos religião, temos espiritualidade! Mas o convertido pra desconverter aquilo que ele acredita é muito difícil, são pontos que muitas vezes eu não entendo muito, pois se eu colocar hoje, e você me perguntar “qual é a sua religião?” Eu não tenho religião, tenho espiritualidade, e se colocar hoje por dentro do nosso território, temos três igrejas predominantes lá: a Católica, a Protestante e a Adventista.
AG: Essas Igrejas são administradas pelos próprios indígenas?
AW: Sim! Pelos próprios indígenas. São conteúdos que muitas vezes você pensa o que precisa mudar nisso, é a questão do conceito, e quando a conceito não se mexe. Tem pessoas que mudam o conceito todo dia, tem pessoas que são baseadas no conceito e levam pra sua vida. Família vai passando de geração pra geração. Eu tenho meus conceitos, mas o mais importante é que quem administra todos esses ambientes são indígenas.
AG: E esse pessoal que é convertido, Pastor que é Kaimbé, eles aceitam a cultura indígena, eles defendem a cultura? Entram em conflito?
AW: Não de jeito nenhum, eles mantêm e defendem a cultura. O errado foi isso, querer introduzir uma cultura na minha vida e apagar a minha. O errado não é você mostrar ou trazer um conhecimento a mais pra mim. O errado é você trazer seu conhecimento opressivo e tentar apagar o meu e oprimir aquilo que eu tenho como crença, aquilo que eu acredito. “ É a essência colonial (comentou João Barcelos)”, exatamente! (confirmou Alex Wera). Isso que foi errado, eu ir na sua casa, não é errado bater na porta, posso entrar? E conversar com você?! Eu levar aquilo que eu tenho, chegar na sua e tentar modificar acima daquilo que é seu, isso foi errado. A religião da forma que foi pregada dentro da cultura indígena é que nós não aceitamos mais! Isso não aceitamos mais em lugar nenhum!
AG: Essas religiões vieram como forma de controle e não como interação.
AW: Exato, você mostrar Deus na Bíblia, eu posso mostrar Deus em tudo: na árvore, no vento, no sol. Os evangélicos falam assim pra mim: Mas vocês adoram o sol. E você, não? Se acabar o sol, você vai sentir o que ele representa em nossas vidas. Há, mas vocês adoram a chuva (comentário evangélico). E vocês, não? (pergunta Alex Werá) Não é possível o ser humano viver em um mecanismo tão eficaz como é o nosso e não adorar tudo, nós temos nosso Deus Tupã, que é o Criador de tudo, eu adoro a Deus por que se Deus não tivesse feito tudo isso, essa obra magnífica que nós temos, o que seria da gente? Nem existiríamos, para estar conversando hoje sobre isso!
JB: Como você vê a possibilidade de um progresso tribal sem deixar de ser uma tribo, sem perder a ancestralidade, se se permitir que as diversas culturas, os diversos falares, sejam uma contracultura do que o colonialismo plantou?
AW: Nós, povos indígenas, não mudamos o nosso estilo de vida, o que mudou foi a questão da evolução humana, cidade, e eu estava pensando: meu tio foi o primeiro Kaimbé que chegou aqui em São Paulo, junto a outros jovens, devido a Guerra de Canudos, por exemplo. De lá pra cá, meu tio gastou 15 dias para chegar aqui em São Paulo, ele veio no pau-de-arara, hoje a gente gasta um dia, pra você ver, o sistema migratório, o sistema de vida é o mesmo, o que mudou foi esse conteúdo de cidade, conteúdo de logística, conteúdo de apoio, conteúdo de visão. Só isso. Nós, Kaimbé, temos hoje um diálogo com todos os povos no Brasil. Eu, como liderança, eu tenho contato amplo com todos os povos. Pois nós temos hoje uma tecnologia que nos dá essa amplitude de dialogar diretamente. Que é a tecnologia do WhatsApp, através das redes sociais. O que acontece lá em Pernambuco, por exemplo, imediatamente chega mensagem no celular. Isso acaba facilitando para nós, que a tecnologia é pra facilitar nossa vida, usada de boa fé. Então vejo que através desse conteúdo estamos nos aprimorando, pois até pouco tempo isso era restrito, era para poucos. E hoje não, nós pegamos esse conhecimento pra nós e estamos sabendo usar da melhor maneira possível. Que é nos comunicar, que é o primeiro ponto. Hoje, os indígenas não se comunicam através da fumaça, hoje é pelas redes sociais, e é importante para não criarmos esse vínculo, criar uma união única, respeitando a cultura de cada um, de cada povo. O ano passado eu participei da sexta Conferência da Saúde Indígena. Pela primeira vez na história se abriu uma vaga nacional pró-Indígenas em contexto urbano, estávamos em mais de 3.600 lideranças indígenas, e eu era o único indígena em contexto urbano a representar essas nações que estão nas cidades, e o que vejo de reflexão para esse momento é que os tempos estão mudando, mas a nossa tecnologia ancestral não, pois automaticamente nos juntamos em nível nacional para discutir um assunto que é a saúde, que diz respeito a todos. E essa saúde era só utilizada dentro das aldeias, a minha ida do contexto urbano para essa reunião é para discutir uma saúde minha, sabendo que eu tenho direito, independente se eu estou dentro do meu território ou não. Pois eu estou dentro do meu território, pois as fronteiras não contemplam os indígenas, as fronteiras contemplam os não indígenas, para nós não compensa eu estar na cidade ou na minha área demarcada, para mim é a mesma coisa, o meu vínculo sou eu, eu dentro do meu território. Então, eu vejo que essa amplitude de diálogo, de união, de estar sempre discutindo pautas que dizem respeito a todos nós, é dizer que: os meus netos, os meus filhos, estão assegurados culturalmente, tradicionalmente, dentro daquilo que é nosso, e não vai se perder, por gerações. Então cabe a nós, indígenas, estarmos sempre antenados, pois sempre fomos antenados ao futuro, respeitando o passado e vivendo o presente. Nós, indígenas, sempre vivemos dessa forma, então vejo que o caminho sempre será esse, e é uma estratégia de resistência que deu certo, pois estamos resistindo até hoje.
AG: Deixa só eu pegar um gancho sobre a saúde que você falou, essas doenças como a Covid, como foi lidado por vocês, e o resgate dessa sabedoria ancestral de ervas e plantas para cura, como funciona hoje em dia?
AW: Hoje, nós, indígenas, temos isso muito próximo, tem muitas coisas que não perdemos, muitos de nós perdemos nossas características de nos vestir, de dançar o toré, de usar o paú, mas nós preservamos todos, e digo todos, pois às vezes eu não me visto, eu não me caracterizo, mas eu uso o chá, minha mãe da aldeia manda o chá, manda as ervas, e continuamos usando, foi uma das coisas que não perdemos, que é a medicina tradicional. A Covid, ela era desconhecida até para os estudiosos não indígenas, e nós desconhecíamos muitas doenças, a gripe matou muito indígena, e a Covid impactou tanto no mundo indígena como a gripe, que veio com os invasores. Mas acima de tudo nós preservamos nossa medicina tradicional, nós fazemos hoje um trabalho dentro da cidade. De trazer a medicina tradicional para dentro do contexto urbano, e isso é muito importante, nós trabalhamos para a conscientização da população que o remédio da farmácia saiu do chá, da medicina tradicional, fazemos a conscientização de preservar as matas, o meio ambiente, o nosso ecossistema, que é riquíssimo em medicina tradicional, que hoje talvez não precise, mas amanhã pode precisar. Quando precisar, a gente talvez não tenha. E quando falo da medicina tradicional, o ar da floresta ele já emite uma medicina tradicional até pela água, pelo vento, pelo clima. Uma união de fatores que a própria mata já nos traz. Respirar o ar puro já é uma medicina tradicional.
JB: Como vocês veem a possibilidade de unir a nação brasileira a favor dos povos indígenas e contras os genocídios?
AW: Nós estamos fazendo um trabalho de conscientização, onde nós colocamos que somos uma barreira de resistência, se os povos indígenas caírem, os próximos serão vocês! Tá saindo agora o estudo do IBGE, que no IBGE de 2010 nós éramos menos de 900 mil indígenas, hoje nós somos 1 milhão e seiscentos e oitenta mil indígenas. O que isso representa, que o nosso trabalho está sendo um trabalho de conscientização, para trazer o indígena pra luta. Hoje nós temos um trabalho, se você ver o Marco Temporal, era pra ser julgado agora e foi adiado por causa das pressões. Se for passado a favor do indígena, vai ter uma mudança de comportamento social muito grande, mas se for passado na forma negativa, o Brasil vai ter uma decadência que não vai se perder mais nunca. Porque agora é um xeque-mate dentro dos territórios, dentro das matas, dentro de tudo aquilo que temos como ecossistema (É o marco do colonialismo, comenta João Barcelos). Mas por que o marco temporal está sendo tão difícil, porque pela primeira vez está se discutindo uma tese que ninguém chega em um consenso, já tentaram votar 25 vezes, mas vão empurrando com a barriga. Pois é difícil discutir algo que não tem brecha jurídica, não tem uma explicação. Uma explicação sensata para definir uma atitude. Um ato, um crime ou qualquer outro tipo de coisa, e não estão achando uma brecha pra dizer como hoje nós não vamos dar favorável o marco temporal em favor das populações indígenas, a vida, as matas a natureza. Eu vejo que o nosso papel é conscientizar a população que pressione. Não é que não queremos que seja votado, queremos que seja votado, mas a favor da vida, daquilo que temos como essência. Porque se for votado contra, eu penso que isso vai se tornar um desgaste tão grande, não só pra mim, mas pra todos. Se acabar a água na sua casa, vai acabar na minha também, são tudo consequências.
JB: O marco temporal tenta a todo custo negar a existência dos povos nativos, a questão é essa.
AW: Eu vejo assim: nós já tivemos vários marcos temporais, onde tudo que importa é a questão econômica, vamos fazer uma lei, forçar um procedimento que não favoreça a população, e não falo só dos povos indígenas, pois o que nos ataca, ataca a todos.
AG: Afinal, a história indígena está no povo brasileiro.
Para finalizar, fale um pouco sobre a cultura de vocês, o Toré, a Zabumba, e deixe uma mensagem para o mundo.
AW: A questão do nosso canto sagrado que é o Toré, temos a tradição da Zabumba e do Paú. O Paú é nosso cachimbo usado para a medicina tradicional. Muitas vezes como fumo, pois o fumo foi muito cultivado pelos povos indígenas e temos nossas ervas usadas como medicina. Quando nós cantamos é para trazer aquilo que temos como pertencimento, como vínculo ancestral, isso acaba nos fortalecendo espiritualmente e culturalmente também. Como eu costumo falar, eu uso muito a questão do território e a questão da cidade. Por exemplo, quando você canta o Toré no território ou no contexto urbano não é a mesma coisa. Quando você come uma comida dentro da sua casa é diferente de quando você come uma marmita fora da sua casa. A comida pode até ser a mesma, mas o vínculo familiar, o vínculo de você viver dentro de um espaço que é seu, é totalmente diferenciado, é uma abrangência social que precisamos e vejo que isso pra nós é fundamental. Preservar nossa cultura, canto, dança, tradição, nossas crenças, nossa história, nossa parceria. E não perder nosso vínculo com nosso território. Isso é predominante em qualquer hábito de vida. O familiar, para nós, indígenas, não se restringe apenas a filho, pai, mãe e irmão. Vai bem além disso. Pai, mãe, filho, irmão, meu antepassado, que traz mensagem para mim até hoje, por isso que nós, indígenas, não morremos, nós ancestralizamos. O morrer para nós é quando não serve mais para nada. E nossos antepassados nos ensinam todos os dias. Cabe a gente escutar um pouco, refletir um pouco e meditar um pouco do que foi ensinado. Pois os ensinamentos dos nossos avós, das minhas lideranças passadas, dos guerreiros que lutaram para que nossa cultura seja preservada, e isso me dá o direito pra que eu possa lutar hoje, para que minha cultura possa prosseguir para as próximas gerações, esse é o meu papel. Então, o canto, a dança e a Zabumba, o Paú traz enriquecimento cultural e fortalecimento cultural. isso acaba enraizando dentro da minha geração a importância de estar usando, me vestindo, cantando, e isso para nós é fundamental. E deixo como mensagem agradecer esse momento, pois falar da minha cultura sempre será um momento especial, falar daquilo que sou sempre será especial, porque isso cria um mecanismo de eu nunca esquecer de quem eu sou e sempre estar falando e dialogando sobre o que eu sou deixa para sempre em nossa vida, para gerações e para a vida de muitos. São momentos como esse que não precisam de projetos. Uma roda de conversa, um chá, acaba fortalecendo não apenas a mim, mas a vocês também, e quando se trata de cultura, tenho minha cultura ancestral, mas vocês têm a de vocês também, a raiz que vocês carregam, isso independente da minha origem ou da sua, nós estamos nos unindo em prol de uma causa que em muitas vezes não sabemos nem qual o tamanho, mas o importante é preservar a cultura de todos. Preservar aquilo que temos como cultura e como história.
Denilza Kaimbé Pajé e ativista indígena “Sou a Denilza Kaimbé, sou da etnia Kaimbé, nasci na aldeia Massacará, no Município de Euclides da Cunha-BA. Minha família saiu da aldeia por invasão do nosso território, na invasão mataram meu tio no lugar do meu pai (José Dantas). O meu pai decidiu vir para São Paulo, onde moramos. Sou liderança feminina Kaimbé, tenho uma missão de resgate histórico do nosso sagrado, ou seja, com as medicinas milenar indígena, como a Jurema, Ayahuasca, Rapé, Sananga e outras, eu faço atendimentos espirituais, palestras e oficinas nas escolas, Universidades, empresas, eventos culturais. Eu sou uma Pajé, pois tenho uma conexão extrema com meus ancestrais, sinto a presença deles, essa energia é maravilhosa. Temos muitas dificuldades morando no contexto urbano. Muitos de nós, Povos Originários, não temos casa própria, passamos por discriminação, preconceitos, alimentação inadequada, não temos atendimento diferenciado nas unidades de saúde.” As palavras de Denilza Kaimbé demonstram a força e a determinação das mulheres indígenas, a presença maciça delas nas lideranças das aldeias. E mostram as dificuldades que é ser indígena dentro das cidades. “Achei que minha vida seria fácil trabalhar com meus parentes, é assim que nós tratarmos os povos indígenas de parentes, mas foi engano, porque o preconceito, a discriminação, a falta de empatia de alguns colegas e da chefia, que a todo momento dizia, ‘aqui você é somente uma empregada, uma profissional não pode fazer interferência como indígena’.”

da aldeia multiétnica de Guarulhos.
Vanuza Kaimbé, professora e liderança indígena. Vive na Comunidade Filhos da Terra, da aldeia multiétnica de Guarulhos. Nas palavras de Vanuza, podemos perceber também a dificuldade dos indígenas em contexto urbano de serem aceitos pelas comunidades tradicionais. “Com várias cicatrizes no corpo e na alma, lutamos todos os dias para manter nossos costumes, nossas línguas, nossa identidade. Para nós, Povos Originários, é motivo de orgulho resistir a toda violência sofrida, conservando nossa espiritualidade, nossa ancestralidade e nossa cultura, sempre com respeito à vida, à natureza e à mãe Terra. Um indígena na cidade de São Paulo, nos dias atuais, sente o mesmo sofrimento que seus ancestrais, com o descaso com que é tratado, seus direitos suprimidos, e a condição de invisibilidade a que é submetido. São Paulo é campeão em homenagear os “assassinos” dos povos indígenas, como os Bandeirantes, cujos nomes batizam rodovias, por exemplo. São Paulo é uma cidade cheia de contradições, os governantes da atualidade, como no passado, não dão aos povos indígenas a visibilidade que dão a outros povos, que vêm de outros países.”
Após 523 anos de invasão das terras indígenas, os povos tradicionais continuam sua árdua luta pela existência, nos ensinando diversas lições de perseverança, determinação e respeito pela mãe Terra. 305 povos, com uma diversidade cultural incrível, que nos influencia e molda nossa cultura, na música, na dança, na culinária, na alegria e no nosso simples e guerreiro jeito de ser. Em pleno século 21, os povos resistem e provam que, apesar de antigos, encontram-se de forma muito atual, afinal, demorou mas, finalmente, entendemos que, sem a cultura da natureza e de sua preservação e compreensão, nós estamos fadados à extinção. Afinal, também somos parte integral da mãe natureza.

Agradecimento pelas imagens: Koty Tribo de Comunicadores.
