A Sombra Esquecida da Ditadura: O Genocídio Indígena no Brasil
Quando falamos da Ditadura Militar brasileira (1964-1985), muitas vezes a narrativa se concentra na repressão política nas cidades, na censura e na perseguição a opositores. No entanto, uma parte crucial e dolorosa dessa história permanece nas sombras: a violência sistemática e o genocídio contra os povos indígenas.
Como Walter Benjamin nos lembra, “A história é um profeta com olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será.” Olhar para o passado, especialmente para essa parte silenciada, é fundamental para garantir que tais atrocidades jamais se repitam.
O “Progresso” que Custou Vidas
Entre 1967 e o final da década de 1970, o Brasil vivia sob um forte discurso de desenvolvimento e progresso, impulsionado por grandes obras e estradas, como a famosa Transamazônica. Esse discurso, comum em regimes militares, vinha acompanhado de um nacionalismo conservador que não tolerava a diversidade.
Para o regime militar, centenas de povos com costumes e culturas próprias eram uma ameaça à “soberania nacional” e um obstáculo ao projeto desenvolvimentista. Lideranças indígenas que defendiam suas terras e culturas eram consideradas desobedientes ao Plano de Integração Nacional (PIN) do governo Castelo Branco, resultando em mortes, perseguições, prisões, torturas e assassinatos.
A Transamazônica: Um Rastro de Destruição
Construída entre 1969 e 1974, a Transamazônica visava ligar o norte do país ao restante do Brasil. Milhares de trabalhadores foram empregados, mas o custo humano e ambiental foi imenso. A estrada cortava territórios de povos como os Yanomami, Waimiri-Atroari, Cinta Larga e Panará, levando a um contato forçado e, muitas vezes, letal. A Comissão da Verdade estima que ao menos 8.500 indígenas foram mortos durante a Ditadura Militar, embora o livro “O Massacre” sugira um número que pode chegar a 40.000 mortos, abrangendo todos os povos.
A Fazenda Guarani: Um “Campo de Concentração Étnico”
Um dos episódios mais sombrios foi a Fazenda Guarani, em Minas Gerais. Oficialmente uma propriedade da Polícia Militar, funcionou como um presídio indígena de trabalho forçado. Denominada um “campo de concentração étnico”, seu objetivo era remover os povos indígenas de suas terras, liberando-as para fazendeiros.
Cerca de 300 indígenas foram aprisionados lá entre 1977 e 1979, vindos, em parte, do Presídio Indígena Krenak. Segundo o professor Pedro Pablo Fermin Maguire, que pesquisou o local, os prisioneiros viviam sob um “regime de exceção, sem garantias processuais, tipos penais e nem sentenças definidas” — uma prática ilegal e desumana.
Depoimentos chocantes revelam as torturas sofridas. Geovanni Krenak, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), relatou o exílio de seu avô para a Fazenda Guarani, onde ele faleceu. “Foi uma tática do governo de tentar exterminar o povo”, afirmou. Proibição de falar a língua materna, de casar-se com pessoas da mesma etnia e a criação da Guarda Rural Indígena, que torturava e punia os próprios indígenas, são apenas alguns exemplos das violações.
A Aprovação Governamental ao Genocídio
É chocante constatar que o genocídio muitas vezes contava com a aprovação de órgãos governamentais que, em teoria, deveriam proteger os povos indígenas. A transferência de indígenas para a Fazenda Guarani, por exemplo, foi autorizada por ofício da FUNAI. Isso abria as portas para a ocupação das terras indígenas por fazendeiros, com o apoio do governo.
Relatos de indígenas como Edmar Krenak, que foi “despejado dentro de um vagão de carga, que nem animais”, e Maria Sônia Krenak, que lembrou das privações e da fome, mostram a arbitrariedade e a desumanidade desses atos. Mesmo após o fim oficial da Fazenda Guarani em 1979, organizações indigenistas como o CIMI denunciaram seu funcionamento arbitrário em 1981, evidenciando a persistência das ilegalidades.
Dano ao Projeto de Vida: Um Crime Duradouro
As violações sofridas pelos povos indígenas durante a ditadura não se limitaram à violência física. O conceito de “dano ao projeto de vida” é fundamental aqui. Ele descreve o impacto de longo prazo na expectativa de vida, na cultura e na dignidade de um povo. O impedimento de viverem de forma digna, de seguirem suas tradições e de construírem seu futuro de forma autônoma, gerou traumas profundos e uma degradação cultural secular.
Além da perseguição humana, a Ditadura Militar também atacou a Floresta Amazônica. Com uma visão equivocada de que a floresta era um “inferno verde” que atrapalhava o “progresso”, o regime incentivou desmatamentos e incêndios. Ignorava-se a conexão intrínseca dos povos originários com seus ecossistemas, que eram a base de suas crenças, culturas, medicina e alimentação.
Táticas de Extermínio: De Contaminação a Bombardeios
As táticas de extermínio iam de ações diretas, como execuções armadas, a métodos cruéis e desumanos. O livro “O Massacre”, de Silvano Sabatini, relata como militares sobrevoavam áreas indígenas e jogavam brinquedos contaminados para crianças, além de lançar folhetos que taxavam os indígenas de inimigos da pátria, instigando o ódio e o medo. Essa prática remete aos tempos da colonização, quando roupas contaminadas com doenças eram dadas aos povos indígenas.
Os povos Waimiri-Atroari e Cinta Larga foram alguns dos mais afetados. A Comissão da Verdade contabiliza cerca de 2.650 Waimiri mortos e 3.500 Cinta Larga. O indigenista Tiago Maiká Schwade descreve o caso Waimiri-Atroari como “o mais emblemático” devido ao uso de “poderio bélico militar contra um grupo de indígenas praticamente indefesos”, incluindo a utilização de armas químicas e biológicas.
Depoimentos de militares da época revelam a mentalidade da “terra arrasada”: “a estrada é irreversível, como é a integração da Amazônia ao país”, disse um coronel em 1975, afirmando que a obra “tem que ser construída, custe o que custar”. Sobreviventes, como Viana Womé Atroari, relatam bombardeios em suas aldeias: “Foi assim, tipo bomba, lá na aldeia. O índio que estava na aldeia não escapou ninguém.”
Negar o Passado é Condenar o Futuro
Apesar de todas as denúncias e evidências, o descaso social e institucional com a questão indígena durante o regime militar é um dos maiores crimes cometidos contra os povos originários. O objetivo deste trabalho, é, trazer luz a essa obscuridade, denunciar as práticas abusivas, autoritárias e ditatoriais do Regime Militar, que se assemelham a regimes fascistas e nazistas.
A ascensão do revisionismo histórico, que busca negar as atrocidades da Ditadura, torna ainda mais vital o compromisso com a verdade. A memória das vítimas, os depoimentos, os relatórios e os documentos oficiais são fatos incontestáveis que não podem ser apagados.
É fundamental que se reparem esses danos e injustiças. Trazer relevância e transparência a essa história “escanteada” é uma forma de garantir que a brutalidade jamais se repita. Ditadura nunca mais.
