O Blog Terra Sagrada tem o privilégio de apresentar uma coletânea de textos de profunda reflexão e sabedoria, de autoria do professor de artes Mauricio Remigio. Ativista anarcopunk e guerreiro com décadas de envolvimento em causas sociais, sua trajetória é marcada por uma história de superação, esperança e resistência. É com grande satisfação que compartilhamos suas ideias inspiradoras com nossos leitores.
Carregamos o peso dos velhos hábitos como correntes invisíveis. Contraditoriamente, muitas vezes esperamos que a mudança desça de cima, imposta por decretos frios e mãos alheias, como se a liberdade pudesse ser concedida por outros. Esquecemos que cada gesto nosso ressoa no coletivo, que cada escolha é uma semente lançada ao solo fértil da transformação.
Se sabemos que a verdadeira mudança não nasce em gabinetes nem se dobra em papéis timbrados, por que temos tanta dificuldade em transformar a nós mesmos?
A mudança, antes de qualquer coisa, pulsa na coragem de quem recusa, no fazer cotidiano que rompe as amarras da repetição, da inércia, da mera reprodução do que nos foi imposto.
Ela não é uma miragem distante, está viva em cada passo que ousamos dar, em cada laço que tecemos, em cada negação ao mundo que nos aprisiona. Porque toda transformação genuína brota no indivíduo e só floresce quando se faz coletiva.
Estética do capital
É importante refletir sobre uma realidade muitas vezes romantizada: a captura da arte pelas engrenagens do capital, inclusive por corporações que destroem o meio ambiente e esvaziam os territórios de sentido. Como é o caso da Amazônia, constantemente explorada como pano de fundo exótico para campanhas de marketing “sustentável”.
A aproximação entre arte e mercado não é recente. Basta uma breve pesquisa para perceber que, há décadas, artistas já expressavam essa simbiose entre criação estética e lógica capitalista. A verdade é que, com ou sem Estado, a arte se tornou mercadoria, e o sistema das artes consolidou-se como um mercado bilionário que frequentemente vende a ideia de transgressão como produto rentável.
É preciso dizer que os artistas não são inocentes nesse processo. Muitas vezes, são eles próprios que conduzem suas obras aos braços das corporações, disputando espaço, visibilidade e financiamento, seja por meio de editais governamentais com lógica neoliberal, seja em projetos empresariais que exploram a natureza, o trabalho e as culturas locais. Vejo isso no cotidiano, artistas, em diversas localidades, celebrando sua participação em ações patrocinadas por corporações, bancos ou outras empresas que utilizam a linguagem da arte como recurso simbólico para encobrir suas violências estruturais. A lógica do consumo atravessa tudo, inclusive os modos de fazer arte.
É possível observar a diversidade de narrativas de filmes potentes que só podem ser acessados por meio da plataforma da Globo, uma empresa que, paradoxalmente, defende e lucra com o extrativismo e o agronegócio. Isso evidencia que a lógica de mercado não está apenas nas grandes corporações; ela está disseminada em todo o ecossistema das artes, inclusive nos editais estatais, locais e nacionais.
O problema, portanto, não se restringe às grandes empresas. A lógica mercantil penetrou profundamente os tecidos da cultura e da arte. Está nos editais, nos discursos institucionais, nos prêmios, nas bienais, nos festivais e nos modos de reconhecimento. Está na maneira como nos relacionamos com a própria criação. Por isso, é urgente problematizar não apenas as alianças explícitas, mas também a dependência afetiva e política que o mundo da arte mantém com as estruturas de poder.
Uma crítica radical à mercantilização da arte precisa também atravessar os afetos que nos ligam a esse sistema. Inclusive o desejo de ser aceito por ele, de se tornar um artista visível, mesmo que isso signifique associar seu nome a empresas e instituições que perpetuam a mesma lógica que muitos dizem criticar.
Cantar e dançar
Cantar e dançar não precisam ser confinados a um exercício técnico ou racional, moldado para satisfazer expectativas alheias, atender às demandas de um mercado predatório ou se adequar aos padrões formais impostos por uma visão colonial de mundo. Essa lógica é própria de uma cognição ocidental, que desvirtua até as expressões mais sagradas do humano, transformando arte em mercadoria e ritual em espetáculo. Para os povos originários, cantar e dançar são expressões de vida, de conexão com a terra, com o sagrado e com o coletivo, e não algo que possa ser aprisionado ou vendido.
Essas manifestações precisam romper as amarras impostas pela colonização. Devem renascer como rituais vivos, carregados de sentidos profundos e de uma comunhão entre quem cria e o universo. Cantar e dançar, sob uma perspectiva originária, não são produtos, mas atos sagrados de existir e resistir, carregando as memórias de ancestrais e as nuances únicas do que significa ser parte de uma comunidade viva. Elas não seguem as regras de um mercado insaciável, mas celebram a liberdade, o espírito, a autenticidade e o ciclo natural da vida.
Quando os sons e os movimentos emergem dessa conexão com a terra e o cosmos, recuperam sua força ancestral. Tornam-se expressões que não apenas comunicam o indizível, mas também recriam o vínculo com o mundo, com a floresta, com o rio e com o céu. Nesse instante, encontramos algo revolucionário e profundamente vivo: a existência plena, em diálogo direto com o meio, livre de grades e máscaras impostas, como uma flor que desabrocha para honrar a vida e os que vieram antes.
Na prisão do quarto
Na prisão do quarto, ele vivia entre teorias que se empilhavam como muros de capas de livros, isolando-o do mundo que lá fora clamava por ação. Com palavras, julgava o mundo sem tocá-la. Até que, certo dia os livros romperam o silêncio; naquele instante, compreendeu que teorias não florescem no isolamento dos pensamentos. Na vibração das mãos que tocaram a terra, ele despertou. Abandonou as capas paredes e se lançou. Desceu as escadas, abriu a porta e conseguiu sentir o cheiro do esgoto que escorria pela rua.
Na prisão do quarto, ele vivia entre teorias que se empilhavam como muros de capas de livros, isolando-o do mundo que lá fora clamava por ação. Com palavras, julgava o mundo sem tocá-lo. Até que, certo dia, os livros romperam o silêncio; naquele instante, compreendeu que teorias não florescem no isolamento dos pensamentos. Na vibração das mãos que tocaram a terra, ele despertou. Abandonou as capas paredes e se lançou. Desceu as escadas, abriu a porta e conseguiu sentir o cheiro do esgoto que escorria pela rua.
Nas entranhas da cidade
Na velocidade dos desastres climáticos, a Terra se revela em tragédias, expondo as marcas da ganância humana. Enquanto a política se camufla em discursos diversos, cores e bandeiras, o ciclo de injustiças permanece, entrelaçando-nos em histórias não contadas. Sob o peso das pegadas do desenvolvimento, a terra continua a lamentar, com seu solo fértil manchado pelo rastro voraz dos poderosos.
Enquanto isso, a existência é reduzida a dígitos nas linhas de código de barras, e os ponteiros dos relógios ditam o ritmo da submissão. A Terra, sob o jugo dos gananciosos, tem sido explorada para alimentar a máquina voraz, enquanto sonhos são devorados por uma ganância insaciável.
A solidariedade, que emerge nos momentos de catástrofe, representa o ápice da força individual, residindo na autonomia e na interdependência voluntária entre as pessoas. Nos períodos de crise, experimentamos uma solidariedade genuína, que se apresenta como a única esperança para um presente melhor. Ela se revela como um contraponto vital ao individualismo e à ganância. O apoio mútuo fortalece os laços humanos, criando uma rede de suporte que transcende as fronteiras do individualismo. Enquanto alguns buscam acumular poder e recursos, a solidariedade nos recorda da importância de nos unirmos em prol do bem comum, construindo um mundo mais justo e igualitário no presente. Se cultivássemos mais a solidariedade, poderíamos viver sem depender dos políticos.
Autor :Maurício Remígio . Professor de Arte. Tem envolvimento com o movimento AnarcoPunk desde 17 anos.
https://www.instagram.com/mauricio_remigio?igsh=MXRkOTcyMWI1YTdvZQ%3D%3D&utm_source=qr
Letra da música abaixo de Maurício Remígio
