Enawenê-nawê : O Povo Alegre.
Os Enawenê-nawê falam uma língua da família Aruák e vivem em uma única grande aldeia próxima ao rio Iquê, afluente do Juruena, no noroeste de Mato Grosso. A cada ano iniciam um longo ritual destinado aos seres subterrâneos e celestes iakayreti e enore nawe, respectivamente. Durante este período os Enawene Nawe cantam, dançam e lhes oferecem comida, numa complexa troca de sal, mel e alimentos – sobretudo peixe e mandioca. Dessa forma, organizam o trabalho com o intuito de produzir alimentos para o consumo cotidiano e para serem oferecidos nos rituais.
Desde o início dos anos 2000, contudo, suas formas de produção e reprodução da vida social encontram-se fortemente ameaçadas. O projeto de construção de onze PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) nos arredores da TI Enawenê-Nawê, se concretizado, poderá afetar por completo a dinâmica ecológica do seu meio aquático, comprometendo diretamente a realização das cerimônias rituais, que são de suma importância para a vida dos Enawenê-nawê. Aliado a isso, encontram-se cercados por outras ameaças de invasão e de poluição dos rios e de suas terras, proporcionadas pelas atividades agropecuária, mineradora e pelo cultivo de soja no entorno de seu território.
Nome

(Thomaz de Aquino Lisbôa, 1985)
Língua
Os Enawenê-nawê falam uma língua da família Aruák, parecida com aquela falada pelos Paresí. Um recente trabalho sobre fonética e fonologia da língua Enawenê-nawê (Rezende, 2003) indica que ela pertence à família Aruák (Maipure).
(Katia Silene Zorthêa, 2006)
Localização

Os Enawenê-nawê habitam uma região de transição entre o cerrado e a floresta equatorial. Esta área encontra-se no vale do rio Juruena, formador do rio Tapajós, na porção noroeste do Estado de Mato Grosso. As cidades mais próximas da TI são Brasnorte, Juína, Comodoro e Sapezal, sendo que as três últimas correspondem aos municípios onde a TI está localizada.
A T.I. Enawenê Nawê tem como vizinhos mais próximos os povos Menky, Nambikwara, Rikbaktsa, Iranxe e Cinta Larga.
Desde meados da década de 1980, este povo ergueu suas aldeias nos arredores do rio Iquê, região de sobreposição com a ESEC Iquê. O Iquê compõe a bacia do Juruena e parte das suas nascentes chega até a cidade de Vilhena (RO).
A história da ocupação enawenê-nawê na região do Vale do Juruena aponta para um ciclo envolvendo uso intenso do território para subsistência de um lado, e fugas e ataques do outro. Agricultura, pesca e guerra definiram, portanto, os movimentos e deslocamentos por essa área do Alto Juruena, incluindo uma área das nascentes do Aripuanã, o único rio que não faz parte da bacia do Juruena, mas sim do Madeira. As terras tradicionais e de ocupação efetiva dos últimos 150 anos (no mínimo) estendem-se do Doze de Outubro e Camararé ao sudoeste, às nascentes da sub-bacia do Aripuanã ao noroeste, as nascentes do Rio Preto e Juína Mirim ao norte e nordeste, e como limite sudeste o Papagaio e o próprio Alto Juruena em sua confluência com o Juína. Segundo esse ciclo, os Enawenê-nawê habitaram desde sempre (imemorialmente) e até cerca de 70 anos atrás, as terras compreendidas entre as cabeceiras do rio Aripuanã (Hawinaware), Rio Preto (Adowina), e Rio Arimena (Olowina), os dois últimos afluentes da margem esquerda do Juruena.. Circularam intensamente por essa região de cabeceiras, erigiram dezenas de aldeias, acampamentos, barragens de pesca, etc. Após várias ondas de ataques oriundos, em épocas diversas, dos Rikbaktsa e dos Cinta-Larga, finalmente iniciaram um movimento de deslocamento mais radical da região, temerosos da assiduidade e impetuosidade cada vez maiores dos ataques dos últimos. Pode-se dizer que essa área, no coração da “Serra do Norte”, é o ponto-chave da territorialidade enawenê-nawê, pois além de ter sido palco de inumeráveis aldeias e intensa peregrinação até o início da década de 1940, e de deter muitos recursos fundamentais para a sua reprodução sociocultural, possui um aspecto cosmogeográfico muito distintivo: trata-se da confluência de uma tríplice cabeceira (rios Preto, Arimena e Aripuanã) assentada sobre um conjunto de morrarias com fauna e flora bastante peculiares, formando um nicho diferenciado em uma região que já é de transição e portanto bastante singular em termos de ecossistema. Essas morrarias são consideradas moradas dos yakairiti, espíritos subterrâneos aos quais se dedica a maior parte do ciclo anual de ritos, envolvendo práticas musicais e ecológicas. É também lá que se encontra a principal fonte de jenipapo (dana), fruto indispensável ao ritual Iyaõkwa para a pintura corporal, e por isso a região é chamada Danakwa (jenipapal). Os Enawenê-nawê jamais deixaram de coletar esse fruto nesse local, mesmo diante das mais tensas conjunturas de guerra.
Entretanto, a sobrevivência fê-los deslocar as aldeias em direção ao sul, passando pelas margens do rio Juruena – local não preferencial por tratar-se de rio de grande porte –, onde também foram atacados, tanto pelos Cinta-Larga como pelos Rikbaktsa, que ocupavam ambas as margens desse rio.
Deslocando-se continuamente em direção ao sul, por volta dos anos 1950 os Enawenê-nawê chegaram às margens do rio Iquê, tendo daí expulsado os Nambikwara. Anos depois também foram vitimados por seus históricos e já bem conhecidos inimigos, os Cinta-Larga, sendo obrigados a continuar fugindo pelo Camararé. Na década seguinte, os Enawenê-nawê se depararam com as frentes telegráficas, e delas também recuaram, decidindo habitar nas proximidades do rio Primavera, um pequeno afluente da margem direita do rio Camararé, em pleno território nambikwara. Aí permaneceram até meados dos anos 1980, quando então migraram de volta para a região do rio Iquê, onde permanecem até hoje, deslocando-se apenas por pequenas distâncias nas margens desse rio.
A T.I. Enawenê Nawê foi demarcada deixando de fora áreas de suma importância sociocultural, como a do Rio Preto e suas cabeceiras. A demarcação se deu com base em estudos incipientes, calcados principalmente sobre as primeiras coletas de dados empreendidas pela MIA (posteriormente OPAN) após o ‘contato’. Estudos mais aprofundados somente foram levados a cabo no início da década de 1990 (conluídos em 1995), quando a demarcação já havia sido feita e a Portaria Declaratória da Área publicada. Some-se a isso o fato de que o momento do ‘contato’ (1974) se deu no momento limite de êxodo e relativa redução no escopo do uso do território tradicional, uma vez que encontravam-se refugiados em território considerado nambiquara. O escopo de suas ocupações sazonais encontrava-se constrangido ao extremo pela estratégia de sobrevivência. Uma vez assegurados de que os ataques não se repetiriam, voltaram paulatinamente a re-expandir as peregrinações e ocupações tradicionais focadas na agricultura, na pesca e na coleta, fundamentais para o retorno da vitalidade ritual tão característica desse povo.
É por esse motivo que hoje a T.I. Enawenê Nawê encontra-se em processo de revisão de limites, cujos estudos serão em breve concluídos.
(Ana Paula Lima Rodgers, 2010)
História do contato

Desde 1962, os missionários jesuítas obtiveram noticias, por meio dos seringueiros que trabalhavam na região, da existência dos índios que mais tarde foram conhecidos por Enawenê-nawê. Diziam ser de índole pacífica, pois não hostilizavam os trabalhadores, mas trancavam os córregos, a fim de que os brancos não atingissem suas moradias.
Em setembro de 1973, em sobrevôo realizado pelo avião da Missão Anchieta, foi localizada uma aldeia às margens do alto rio Juruena. Pela localização, havia certa probabilidade que fosse algum grupo de índios Nambikwara e, por este motivo, no ano seguinte os missionários levaram consigo índios deste povo para estabelecer contato com eles.
Ao chegarem ao pátio de uma pequena aldeia de caça, logo surgiu a primeira dúvida sobre o novo grupo indígena, pois foi encontrada uma flecha quebrada e a amarração da pena era idêntica à dos índios Rikbaktsa; além disso, era certo que os índios em questão dormiam em redes, pois dentro das casas foram vistos armadores e cordas de embira. Assim, era praticamente certo que não se tratava de um grupo Nambikwara. Com a possibilidade desses índios serem Rikbaktsa, os missionários resolveram pedir para que índios deste povo os acompanhassem em uma nova expedição.
Após algumas tentativas, atingiram finalmente uma roça nova. Prosseguiram cautelosamente e chegaram a uns 20 metros do pátio da aldeia. Os Rikbaktsa escutaram a fala de mulheres, mas nada entenderam, e descobriu-se, então, que não se tratava de índios Nambikwara e nem Rikbaktsa.
Quando a equipe de expedição se aproximou da aldeia houve muita correria. Naquela ocasião só se encontravam mulheres e crianças, que correram para o mato. Passado os primeiros instantes, a equipe da expedição prosseguiu em direção ao pátio e só encontrou um índio de meia idade, com problemas físicos, que não conseguira fugir. Os missionários e os índios da expedição assentaram-se ao pé dele, colocando aos seus pés facões e machados.
Perceberam, então, que tudo que observavam ao redor pertencia ao grupo de língua Aruák: o estilo das malocas, a casa das flautas, o sotaque da língua etc.
Deixaram a aldeia para passar a noite na roça, pretendendo voltar ali no dia seguinte. Quando se preparavam para sair pela manhã, foram surpreendidos pela iniciativa de três índios que, passando o córrego, gritaram de longe e se aproximaram até o local onde estavam acampados. Traziam arco e flechas, sendo um deles mais idoso e os outros dois de meia idade. Foram para a aldeia, onde não havia ninguém, todos continuavam no mato. Logo trouxeram cabaças cheias de chicha de mandioca e os visitantes beberam. O índio mais idoso, a certo momento, retirou-se para o mato; depois de algum tempo voltou trazendo três mulheres, mais um homem e um menino. Com isso estava ratificada a aproximação desse grupo indígena.
(Thomaz de Aquino Lisbôa, 1974)
População

Estima-se que à época dos primeiros contatos os Enawenê-nawê somavam aproximadamente 130 indivíduos. Os dados populacionais desse povo mostram que não apenas a população cresceu bastante de 1974 até a primeira década dos anos 2000, mas ainda que o ritmo desse crescimento tem sido mais veloz nos últimos anos. Em meados de 1996, 22 anos depois dos primeiros contatos, os Enawenê-nawê dobraram a população, reunindo aproximadamente 260 indivíduos. Porém, de 1992 a 2006, passaram de 216 para 435 indivíduos, ou seja, o ritmo do crescimento permitiu que a população dobrasse não mais de 22 em 22 anos, como aquele dado aferido em 1996, mas de 14 em 14 anos. Os dados, além disso, não deixam dúvidas quanto ao fato de o contingente populacional e nawenê-nawê ser, em 2006, bem mais jovem que nos anos 1970. As “crianças” (dinwá) somam quase dois terços da população, segundo a classificação nativa, o que muito provavelmente deve ter conseqüências importantes na capacidade reprodutiva desse povo.
(Marcio Silva: Notícias Recentes – PIB, 2006)
Cultura material

O padre jesuíta Tomáz de Aquino Lisbôa que, em 1974 participou da expedição do primeiro contato oficial dos Enawenê-nawê com os brancos, fez uma descrição da aparência desses índios nessa ocasião. Contou que os homens tinham cabelos compridos caindo nas costas e aparados na região temporal, acima das orelhas. Boa estatura, mais brancos que escuros, trazendo no peito adornos de algumas penas encastoadas em peças arredondadas e trabalhadas, de coco de tucum, tendo tiras finas de algodão apertando o bíceps e a barriga da perna e, nos tornozelos, fitas mais largas. O pênis embutido em palhinha amarrada. Nas orelhas traziam argolas pretas, também de tucum, nas quais estavam presas conchas brancas de forma triangular.
As mulheres tinham cabelos compridos aparados acima das orelhas, tal como os homens. Usavam cintos com muitas voltas, feitos de tucum. Traziam mini-saias feitas de algodão e tingidas de urucum. Na barriga das pernas traziam argolas de borracha. À altura do umbigo, tinham muitos traços desenhados, tatuagens. Como os homens, traziam tiras finas de algodão apertando o bíceps. Nas orelhas, brincos iguais aos dos homens.

Tais características foram também observadas por Virgínia Valadão anos depois. Ela conta que os Enawenê-nawê fabricam redes, saias e pulseiras de algodão que cultivam. Pintam de vermelho as saias e o corpo com urucum. Em ocasiões especiais também usam a pintura preta de jenipapo, fruto de uma árvore. Estão sempre com os cabelos bem cortados, com franja, sulco raspado por cima da orelha e compridos atrás. Dentes de animais, frutos vegetais e penas de pássaros, em especial arara vermelha, papagaios, mutum e gavião complementam os colares e cocares. Os Enawenê-nawê criam araras e papagaios dos quais tiram penas para os colares. Não é preciso matar os animais. Fazem inclusive um tipo de tratamento nas penas do rabo dos papagaios com uma secreção extraída da pererecas, que transformam algumas penas verdes em amarelo ouro.
As mulheres têm duas meia-luas tatuadas nas laterais do umbigo, usam saias vermelhas de algodão e urucum, colares pretos de tucum na cintura e brincos de conchas nas orelhas. Os homens usam estojo peniano. É uma palha enrolada feita de fibra de buriti que serve para amarrar o pênis. É muito vergonhoso andar sem essa palhinha, é como andar nu, e os meninos passam a usá-la quando estão entrando na adolescência.
Para realizarem seus rituais, os Enawenê-nawê dispõem de uma grande variedade de bambus e cabaças de diferentes tipos e tamanhos, das quais são feitas flautas e chocalhos. Cada grupo ritual toca um instrumento diferente e o som produzido na pátio da aldeia, quando da realização do ritual Yãkwa, é o de uma verdadeira orquestra. Cada instrumento está relacionado a um grupo ritual, o qual, por sua vez, a um grupo de espíritos.
(Thomaz de Aquino Lisbôa, 1985 e Virgínia Valadão (1952-1998) – Adaptado pela equipe do ISA, 1998)
Organização social

A aldeia
A aldeia enawenê-nawê tem um formato circular e é formada por casas comunais retangulares e uma casa circular, mais ou menos no centro, chamada de Yãkwa, onde ficam guardadas as flautas. No pátio central são realizados os rituais e as partidas de futebol de cabeça, esporte tradicional dos Enawenê-nawê, cujas bolas são feitas de látex extraído das seringueiras. Apanham água, tomam banho e lavam suas panelas em pequenos igarapés situados próximos à aldeia e fazem pequenas roças nos seus arredores.
As casas são feitas de troncos de várias grossuras amarrados com cipós e cobertas com palhas de buriti, com uma entrada de frente para o pátio e outra nos fundos. No interior das casas há uma área de circulação comum formada por um longo e largo corredor central que liga a duas entradas. Aí estão dispostos grandes jiraus (espécie de mesa alta feita de troncos finos espaçados entre si) sobre os quais se colocam bolos assados de milho, massas de mandioca para secar, entre outros alimentos.
Em cada casa moram diversas famílias ligadas entre si por relações de parentesco. Cada família composta de pai, mãe, filhas e filhos solteiros tem seu próprio fogo, suas redes próximas e um jirau onde guardam os seus pertences. Nestes agrupamentos, os homens são responsáveis pelo provimento de lenha, pela derrubada, queimada e plantio, enquanto as mulheres praticam a limpeza periódica das áreas cultivadas, a colheita e o processamento do alimento.
Além dos casais mais velhos, divisórias de esteiras marcam o espaço dos casais mais jovens. As filhas ficam perto dos pais e, portanto, são os jovens esposos que vão para o outro lado da casa ou para outra residência. É esta unidade – que agrega algumas famílias – a responsável por uma cozinha comunal e pelas roças de milho.
O interior das casas é muito agradável e cheio de atividades. Durante o dia, quando está quente do lado de fora, as casas protegem do calor. À noite elas são iluminadas com tochas de resina enrolada em folhas de pacova e são acesos os fogos de cada uma das famílias.
(Virgínia Valadão (1952-1998): Centro de Trabalho Indigenista – Adaptado pela equipe do ISA, 1998 e Marcio Silva, 1998)
Os clãs
Os clãs são as unidades mais abrangentes da estrutura social e nawenê-nawê. Eles são segmentos patrilineares (o pertencimento a um grupo clânico se dá pela linha paterna) espacialmente dispersos devido à regra do casamento uxorilocal, em que o marido vai residir, junto com sua esposa, na casa dos pais dela. Desempenham importantes funções matrimoniais, rituais, econômicas e políticas.

Os clãs não são formados apenas por pessoas, mas também por legiões de espíritos subterrâneos e espíritos celestes, todos associados a conjuntos de flautas. Segundo os Enawenê-nawê, estes grupos são compostos pelos descendentes de populações míticas que viviam espalhadas por todo o vale do rio Juruena e regiões adjacentes, até que uma série de catástrofes (ataques de povos inimigos, de espíritos e de onças, dilúvios, doenças etc.) as dizimou quase totalmente. Os sobreviventes dessas catástrofes teriam se reunido em torno de (conjuntos de) yakaireti, que são os seres sobrenaturais que habitam o interior da terra, sob os acidentes geográficos. Os clãs, ou como preferem os Enawene Nawe, os yãkwa, são compostos de “restos” de uma ou mais populações míticas, que podiam casar-se entre si. Dessa forma surgiram os Enawenê-nawê atuais, que utilizam a categoria yãkwa para designar ora estes seres criadores, ora as próprias unidades exogâmicas (que não permite o casamento no seu interior) por eles criadas.
A cada dois anos os clãs se alternam como harikare, papel definido pelos Enawenê-nawê como o responsável pelo cultivo da grande roça de mandioca adjacente à aldeia. São eles também os responsáveis pela fabricação do sal de origem vegetal, consumido durante os rituais que tematizam a reunião dos yãkwa. O clã que desempenha a função de harikare parece representar nas cerimônias os grupos míticos de origem (ou seus “restos”), enquanto os demais encarnam coletivamente os espíritos fundadores do agrupamento social e são responsáveis pelo fornecimento dos peixes a serem trocados com os harikare por alimento de origem vegetal.
Mito de origem

Contam os Enawenê-nawê que os povos ancestrais, de cujos “restos” eles são originários, habitavam, inicialmente, o interior de uma pedra. Graças ao auxílio de um pica-pau, que fez um buraco na pedra abrindo uma passagem ao mundo exterior, os povos se espalharam pela superfície da terra. Essas populações se apresentavam invariavelmente como culturas incompletas ou defeituosas. Em uma delas, por exemplo, todos os seus objetos eram de palha de buriti, em outra os homens não portavam o enfeite peniano, em outra ainda as aves eram o único alimento consumido. Uma série de catástrofes, provocadas pela ação dos espíritos subterrâneos, sob a forma de ataques de onças, monstros aquáticos, povos inimigos, epidemias etc., quase as dizimou totalmente. Os poucos sobreviventes dessas populações, guiados pelos espíritos celestes e subterrâneos de seus respectivos clãs, foram um por um se dirigindo a uma determinada aldeia, a dos formadores do aweresese, um dos clãs principais. À proporção que chegavam, dirigiam-se à casa-dos-clãs, onde depositavam suas flautas em uma determinada posição que, segundo os Enawenê-nawê, se mantém idêntica até hoje. Uma vez reunidos, os remanescentes de cada uma dessas populações se envergonharam de algumas de suas idiossincrasias culturais e ensinaram uns aos outros os seus bons costumes. Assim, por exemplo, os anihiare aprenderam com os outros a não comer mais carne de caça, mas ensinaram aos outros a usar o estojo peniano.
Os Enawenê-nawê “históricos”, isto é, tornados idênticos aos atuais, depois da reunião dos povos e das flautas dos clãs em uma aldeia circular, apreendem assim o seu universo cultural como uma combinação de bom gosto de tradições distintas originárias do tempo dos Enawenê-nawê “míticos”, os que saíram da pedra.
(Marcio Silva, 1998)
A pessoa Enawenê-nawê

Para os Enawenê-nawê a pessoa é uma trindade em potência. Ao morrer, dá-se origem a três subjetividades cósmicas, um enore, um iakayreti e um dakoti. As expressões vitais representadas pela pulsação cardíaca no peito e na região da cabeça, a respiração, a vividez dos olhos, a fala, a sensibilidade olfativa e a audição amalgamam-se no que é conhecido como hesekonase, a “alma celeste”, que sobe ao eno, a camada principal do cosmos. Lá ela desembarca como um deus enore, passando a conviver com seus parentes consangüíneos, do mesmo clã.
Os batimentos manifestados em diferentes pontos dos membros inferiores, nas suas juntas e dobras, formam o oyakoare ou wayakoriri, substância que é tomada pelos iakayreti representantes do patri-clã do morto, que fabricam com este espólio um ser espiritual da mesma raça e família, que passa a viver definitivamente num dos topônimos hidro-geográficos visíveis e distintos da paisagem natural. Um dakoti é uma espécie de cópia ou “duplo” da pessoa, sua sombra; algo vivo, que com o morto, e como ele, deixou de existir e de se movimentar. E sob esta forma segue rumo à cidade dos espectros, no extremo do arco-íris. O corpo, ou melhor, o cadáver, simplesmente apodrece, esvanecendo-se na terra.
A morte
Para o sepultamento do morto, os Enawenê-nawê preparam, da casca de algumas árvores da mata ciliar, uma urna funerária no formato de um tubo da altura da pessoa. Esse momento é marcado por choros, lamentos, comentários, gritos e gestos, acompanhados de um constante vai e vem pela aldeia e de uma grande aglomeração em torno do morto. Terminadas as cerimônias fúnebres, a urna é depositada numa cova funda, aberta no interior da casa, exatamente sob o local que ficava a rede onde a pessoa dormia. Com o morto são enterrados seus pertences e/ou objetos de uso pessoal: colares, cocares, roupas, arco e flecha, machado, facão… Enfim, tudo aquilo que por algum parente é apontado como veículo da lembrança do falecido. Seu próprio nome, inclusive, deixa de ser pronunciado. É a partir daí que se dá início à viagem-transformação da terceira subjetividade enawenê: toda a armadura mortuária segue destino até a cidade das sombras, despojando-se aos poucos durante seu trajeto.
Já desfeito de toda a carapaça vegetal, o morto se depara com uma gigantesca aranha. A mulher que não possuir a tatuagem corporal, insígnia da iniciação, traços inscritos entre os seios e em torno do umbigo, é imediatamente devorada por ela. Já os homens estão livres dessa inspeção, e também crianças de ambos os sexos são poupadas. A viagem ainda não acabou; uma vez livre da aranha, o morto, agora, tem que atravessar o maior de todos os rios – que alguns dizem ser o rio Aripuanã e outros o Amazonas. Sua travessia é feita por uma ponte formada por um emaranhado de cobras coloridas, e logo em seguida ele é recebido com festa, como um dos seus, pelos dakoti. Após a morte de uma pessoa, por várias semanas, em determinadas horas do dia, seus parentes mais próximos executam um choro ritual, um lamento cantado e formal, que evoca a ausência e a saudade do falecido. Nesses momentos falam sobre a importância do morto e o ressentimento com os iakayreti, com sua fúria injusta por uma suposta insatisfação alimentar.
(Gilton Mendes dos Santos, 2006)

Todo esse material foi retirado do Site do Instituto Socio Ambiental. Todos os créditos a esse Instituto sério com muita luta e apoio a causa indígena.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Enawen%C3%AA-n
