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Comunidades Mapuche em guerra e a solidariedade anárquica

Comunidades Mapuche em guerra e a solidariedade anárquica

Autor: Kalinov Most – revista anarquista internacional Data: 2018 Fonte: Retirado de edicoesinsurrectas.noblogs.org 

 

Os Mapuche, os mal chamados araucanos, cultura indígena que habita o centro-sul do território dominado pelo Estado chileno e centro-oeste do território dominado pelo  Estado argentino, teve uma longa história de guerras com Impérios, Reinos e Estados, que, por diversos meios, tentaram submetê-los. Entre aproximadamente 1479 e 1485, o Império Inca, a mando de Tupac Inca Yupanqui, tentou conquistar as ditas comunidades denominando-as promaucaes (termo que em quechua serve para designar os inimigos selvagens[3]), sem ter êxito, o que o levou a buscar a solidificação e manutenção de seus domínios do norte. Mais tarde, no ano de 1535, teve lugar a primeira batalha entre as comunidades Mapuche e a monarquia espanhola, dando início à chamada “Guerra de Arauco”, que terminou com uma série de tratados entre ambos grupos até o surgimento do Estado-nação chileno a princípios de 1800. Durante o transcurso dos séculos de sua duração, o enfrentamento entre a coroa de Castilla e os Mapuche foi variando de intensidade e características. No início foi uma guerra até a morte onde não havia espaço para o diálogo: por um lado, matanças e escravização de indígenas; por outro, a queima de cidades como a principal tática de guerra dos Mapuche. Um marco que reflete a intensidade dos primeiros anos foi a queda do conquistador de Chile e Capitão General Pedro de Valdívia nas mãos dos Mapuche em 1553, quem, segundo o cronista Pedro Mariño de Lobera, “foi morto dando-lhe para beber o ouro derretido que os espanhóis tanto queriam; queimando suas entranhas”. A monarquia espanhola, não podendo submeter as comunidades Mapuche, se viu obrigada a convocar instâncias de negociação, os denominados “Parlamentos” onde se estabeleciam as fronteiras e o comércio entre ambos grupos. Apesar de na maioria das vezes os termos acordados não terem sido respeitados, tais instâncias continuaram até a instauração da nação chilena. As comunidades Mapuche, portanto, souberam conservar sua autonomia apesar do constante assédio castelhano.

Essa autonomia sobreviveu quase nos mesmos termos que com os ibéricos nas primeiras décadas da relação entre mapuches e o Estado chileno, até que entre os anos de 1862 e 1883, este último, representado pelo Coronel Cornelio Saavedra, levou a cabo a “Pacificação de Araucanía”, que consistiu na ocupação militar de todo o território que até então era controlado pelas comunidades Mapuche. Apesar da resistência dos indígenas, o Estado chileno consegue acabar com séculos de controle territorial Mapuche, começando um processo de colonização caracterizado pela cessão de tais terras aos europeus com o propósito de “melhorar a raça” e levar produtividade à região. Desta maneira, a lógica racional do progresso começa a ocupar o local que antes ostentava a religião. É importante apontar que, paralelamente, no outro lado da cordilheira dos Andes, o Estado argentino levantava sua própria cruzada contra as comunidades Mapuche localizadas no setor do Pampa, promovendo o extermínio denominado “A Conquista do Deserto”. Os levantes mapuches não cessaram, fazendo lembrar ao governo chilenos da vez e a sociedade em geral que seguiam ali, que seguiam vivos apesar de serem dados como derrotados ou extintos. Essa rica história de resistência permite fortalecer uma memória que se constrói desde e para o conflito, permite conhecer e aprender com experiências passadas para agudizar o presente. Desde o fim da década dos anos 80 a ofensiva por parte do Estado chileno ao território onde as comunidades Mapuche vivem e reivindicam começou a adquirir características particulares e distintas do que vinha ocorrendo há centenas de anos. A faceta extrativista do capitalismo e as inversões transnacionais levaram à uma nova fase de opressão às comunidades Mapuche. A devastação ambiental começou a ser executada particularmente por hidrelétricas, mineradoras e madeireiras, que mudaram as perspectivas em que o domínio se exerce territorialmente neste setor. Desta forma, a violenta transformação do ecossistema existente em plantações de monocultura por parte das madeireiras, os desvios do curso dos rios por parte de hidrelétricas ou o envenenamento da água produzido pelas mineradoras se converteram em um fenômeno novo, real e urgente a ser enfrentado pelas comunidades Mapuche. Podemos observar também que junto à usurpação de terras intensificadas ultimamente começou a surgir a cooptação por parte do Estado Chileno, baseada na homogeneização de todas as características identitárias do indígena, a ressignificação simbólica de elementos da cultura Mapuche para ser integrada como parte constitutiva de um passado que se imagina e se constrói pelo Chile. Mais evidente nesse sentido é a afirmação máxima por parte do Estado que assinala: “São chilenos todos os nascidos no território chileno”[9], uma única identidade possível. Se agregamos a esse cenário a multiplicação de inversões extrativistas no território Mapuche, podemos terminar de configurar a realidade na qual as comunidades Mapuche se encontram, algumas das quais têm desejado uma convivência pacífica[10] com o winka e outas a se lançarem em um enfrentamento aberto que se recrudesceu nos últimos anos.

É principalmente a partir dos conflitos assinalados que os Mapuche têm se reinventado constantemente em um processo de permanente reelaboração e reconstrução cultural que os possibilitou, entre outras coisas, a manterem-se vivos e continuar lutando. É importante entender que é uma cultura dinâmica em permanente transformação, sendo impossível tentar compreendê-la como um contínuo histórico imóvel e petrificado. Nesse sentido, acreditamos ser imprescindível para o desenvolvimento do presente artigo nos referirmos brevemente a certas características históricas na organização social Mapuche que permitam nos aproximarmos, de alguma maneira, do andamento e das particularidades do conflito atual. COMUNIDADES AUTÔNOMAS Os primeiros relatos que existem sobre os Mapuche convergem em assinalar que não contavam com um poder centralizado, aspecto que surpreendeu de sobremaneira os castelhanos. Nesse caso não estavam frente a grandes Impérios, como os Maias e os Incas, mas se encontraram com comunidades dispersas sem um Rei com quem discutir ou negociar: …um inimigo que se defendeu 40 anos de ofensas contínuas graças a muitos elementos que o ajudam, sendo o principal deles a inexpugnabilidade do terreno acidentado e montanhoso de suas terras, bem como o fato de não ter como morada uma congregação de cidades, mas sim casas rurais diferentes e selvagens onde, para procurá-los, é necessário destrinchar e mapear todo o terreno; as facilidades do local com certeza nos coloca em risco. Além disso, não têm um chefe de governo a quem obedecem fora das questões de guerra… A unidade básica na organização dos Mapuche é de tipo familiar extensa, conhecida até o dia de hoje como lof (equivalente ao “lar”, em espanhol) que constitui o primeiro nível sociopolítico realmente autônomo e o lugar da primeira delimitação de uma fronteira entre eu e o outro[13]. É o espaço onde se cria e recria o sentimento identitário, onde se regulam os problemas tanto internos como externos e se realizam as cerimônias festivas e religiosas. Apesar de existirem instâncias mais amplas de socialização do que as que se davam em cada lof, os Mapuche desenvolveram seu sentido de pertencimento na “família extensa”, na medida que representava (e representa em muitos casos) a principal instância de integração. É importante assinalar que cada lof conta com sua própria autoridade denominada lonko (cabeça), que possui um papel de guia e mediador desta unidade familiar extensa. Desta maneira, não existiu um sentido forte e permanente de pertencimento que transpassasse os limites do lof, a identidade construída e reconstruída no local marcava a fronteira entre o universo simbólico próprio e o alheio. Portanto, não se pode apreciar uma uniformidade nem unificação entre os diversos grupos que habitam o território determinado, inclusive vários estudos afirmam que esses não tinham uma autodenominação comum que os identificasse. Segundo Boccara, “é em torno de 1790 que aparece pela primeira vez mencionado o etnônimo mapuche”, fruto das transformações que experimentaram por conta do contato, em todos os níveis, com os castelhanos e os chilenos. Embora hoje seja

inegável a existência de uma etnia Mapuche que reconhece a si mesmo como tal, o sentido de pertencimento ao lof segue sendo fundamental para os indivíduos que o compõe, continua representando um importante lugar de auto-reconhecimento, e é a partir dai que se articulam e as lutas atuais tomam corpo. Para entender as características do levante atual é importante considerar que a memória histórica é um fator determinante “no momento de realizar as demandas territoriais e de fazer ações para efetivar tais demandas”]. O relato oral, transmitido de geração em geração, referido às terras ancestrais, às fronteiras antigas, aos espaços comunitários prévios à redução feita pelo Estado chileno, à usurpação em todos os sentidos, entre outros tantos aspectos, segue se desenrolando e continua vigente, sustentando e dando conteúdo à prática violenta dxs novxs guerreirxs. Cada ação rebelde leva implícita uma memória histórica ativa que se reconstrói no combate e imprime vontade e decisão. Os Mapuche foram sistematicamente despojados, principalmente pelo Estado chileno, portanto sua luta é pela recuperação, sobretudo de terras, entendendo que elas constituem um elemento central de sua cultura. São “gente da terra” (mapu= terra, che=gente), são parte dela e não a percebem como uma simples mercadoria. As ações violentas por parte das comunidades Mapuche em guerra (descritas mais adiante) se circunscrevem geralmente no local, no antigo lof, seja para recuperar a totalidade do espaço ancestral, para voltar a ter acesso aos recursos naturais, entre outros motivos. Corrêa e Mella nos contam a respeito: “No entanto, as famílias de Temucuicui adquiriram o domínio do fundo Alaska e suas demandas não ficaram aí, decidiram continuar na luta pela reconstrução do antigo lof, do território ancestral”. Embora hoje os Mapuche se considerem e se sintam parte de uma cultura comum (a Mapuche) como consequência de transformações e rearticulações identitárias, o local ainda constitui o principal espaço de resistência e de luta, e sua recuperação é o objetivo direto e imediato das ações dxs combatentes Mapuche devido ao fato de que, como dissemos, continua sendo, como há séculos, o lugar de auto-reconhecimento que marca seu sentido de pertencimento. García Olivo en “Dulce Leviatán”, se referindo às culturas indígenas, assinala que “pesa mais o vínculo local do que a identidade étnica”17, o que encaixa exatamente com a experiência Mapuche. E o local não é apenas o conjunto de imóveis ou pessoas que habitam um setor, mas são as aves, os rios, os morros, enfim, todo o entorno natural com o que interagem e com o qual possuem uma relação inseparável, incompreensível aos olhos de um cidadão ocidental. Assim, esse sentimento com o local vem a romper com o universalismo ilustrado do ocidente, que levanta questões como a Razão Universal ou os Direitos Humanos, tentando abarcar e homogeneizar o conjunto do planeta.

PLUMANEGRA
ANTICOLONIAL E LIBERTÁRIO”
CAMPINA GRANDE- PARAÍBA-NORDESTE- MUNDO
OUTUBRO 2025 / N.07

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Editor

Alex Goulart Baseia - Jornalista