Revolta de Canudos
A história, como bem apontou o líder guerreiro Sioux Nuvem Vermelha, é frequentemente narrada sob a perspectiva dos vencedores: “A história dos Estados Unidos foi escrita com as melhores ações dos brancos e com as piores dos indígenas.” No Brasil, essa máxima ressoa profundamente, especialmente quando se observa a presença indígena. Nossos povos originários estão intrinsecamente ligados à formação do Brasil, manifestando-se na genética, nas expressões culturais, rituais, culinária, festas, na toponímia de ruas e praças, e na própria língua. Diante de tamanha imbricação, surge a inquietante pergunta: por que, como descendentes desses povos, com uma cultura tão profundamente entrelaçada à nossa, desconhecemos tanto essa história?
A resposta reside na própria natureza da narrativa histórica. Em todos os momentos da humanidade, aqueles que detêm o poder – seja ele econômico, político, cultural ou social – moldam a história, perpetuando o desconhecimento. A escravidão e a dominação não se restringem ao físico; elas se enraízam, principalmente, em nossas mentes. É por meio dessa estratégia que os conquistadores mantêm os conquistados em um estado de obediência e servidão. No Brasil, uma elite descendente dos colonizadores tem mantido o controle por séculos, perpetuando “correntes em nossas mentes”. Como alertou o filósofo George Santayana, “aqueles que desconhecem a história estão fadados a cometer os mesmos erros!” A verdade, portanto, é o caminho para a libertação.
Canudos: Um Santuário de Liberdade no Sertão
“O sertanejo é antes de tudo um forte!”, celebrou Euclides da Cunha em sua obra-prima, “Os Sertões”. É nesse cenário de resiliência que surge Canudos, uma comunidade livre e independente fundada em 1893 por Antonio Conselheiro na região de Belo Monte, próximo a Juazeiro, no sertão da Bahia. Esse arraial abrigava camponeses, ex-escravizados e, crucialmente, povos indígenas, que buscavam refúgio e dignidade.
Antonio Conselheiro, cujo nome de batismo era Antonio Vicente Mendes Maciel, era um homem simples, mas com vasto conhecimento. Um cristão independente, desvinculado das Igrejas, do Estado e, principalmente, do poder dos coronéis, Conselheiro sonhava com uma sociedade igualitária e de pessoas livres. Essa visão, desafiadora para as estruturas de poder vigentes, gerou profundo incômodo.
O Cenário que Fomentou Canudos: Desilusão Pós-República
O surgimento de Canudos se deu em um período de transição: o fim da Monarquia e a Proclamação da República. Apesar das promessas de mudança, a vida do povo sertanejo permanecia inalterada, marcada pela miséria e pela tirania das oligarquias rurais, controladas pelos coronéis. O coronelismo era um sistema de poder local, onde grandes fazendeiros impunham suas regras com o aval do Estado e da Igreja, mantendo a população em um regime de semiescravidão e pobreza extrema.
Outro fator determinante foi o “fim oficial da escravidão”. A Lei Áurea, embora significasse a libertação, não ofereceu qualquer indenização ou suporte aos recém-libertos, que foram “jogados nas ruas, sem nenhum direito”. Muitos foram forçados a retornar aos campos em condições análogas à escravidão, enfrentando salários miseráveis, exaustivas jornadas de trabalho, violência e humilhação. Foi diante desse cenário de opressão e abandono que Canudos se apresentou como um farol de esperança, um lugar onde se podia viver com liberdade e dignidade.
A Guerra de Canudos: Um Banho de Sangue Esquecido
A existência de Canudos rapidamente se tornou uma ameaça aos pilares do poder. A Igreja Católica, vendo sua autoridade desafiada pela independência de Antonio Conselheiro e da população, negava apoio. O Estado, por sua vez, sentia-se impotente e desrespeitado, já que Canudos se recusava a pagar impostos. Contudo, os principais prejudicados eram os fazendeiros, que perdiam sua “mão de obra barata, praticamente escrava”.
O estopim para a guerra foi uma “fake news” da época: o boato de que o movimento de Canudos invadiria Juazeiro para tomar materiais de construção. Essa informação falsa, criada para gerar conflito, levou comerciantes, coronéis e o governador da Bahia a contratar 100 jagunços. Embora a invasão não tenha ocorrido, os jagunços avançaram sobre Canudos e foram repelidos pelos moradores, sofrendo baixas. Vale ressaltar que a população de Canudos, inicialmente, não possuía armas.
Essa primeira tentativa de destruir Canudos fracassou, assim como as duas seguintes. A segunda ofensiva, já militarizada, com mais de 500 homens do exército liderados por um tenente, também foi derrotada, permitindo que os canudenses se armassem com os equipamentos deixados pelos militares abatidos. A terceira invasão foi comandada pelo Coronel Moreira César, que proferiu a célebre frase: “Iremos almoçar em Canudos”, subestimando a resistência conselhista. Ele jamais retornou.
A quarta e última ofensiva, ordenada pelo Presidente da República, Prudente de Morais, foi comandada por um general. Em 5 de outubro de 1897, 5 mil homens, munidos de armas de grosso calibre e canhões, invadiram Canudos, promovendo um verdadeiro “banho de sangue”. Estima-se que aproximadamente 35 mil pessoas foram mortas, incluindo execuções sumárias, degola de mulheres e crianças, e estupros. Uma “vergonha nacional” que, até os dias atuais, é objeto de tentativas de apagamento da história brasileira. Em 1960, a região de Canudos foi intencionalmente inundada pela represa de Belo Monte, restando apenas um trecho onde hoje se localiza o Parque Nacional de Canudos. A comunidade de Canudos prosperou de 1893 a 5 de outubro de 1897, e a guerra propriamente dita durou de 1896 a 1897.
A Essencial Participação Indígena em Canudos
“100 anos após a Guerra de Canudos, a participação indígena é menosprezada.” Essa afirmação, que ecoa na pesquisa de Felipe F. V. Vender em “Os Índios do Bom Jesus Conselheiro: Notas sobre história e presença indígena em Canudos”, é fundamental para compreender a lacuna em nossa narrativa histórica. Muitos documentos foram destruídos após a queda de Canudos, e a inundação da região, como já mencionado, parece um esforço deliberado para apagar essa memória.
Na época da Guerra de Canudos, muitos povos indígenas viviam em aldeamentos criados pela Igreja Católica com o intuito de catequese. Apesar de terem existido por cerca de duzentos anos, no final do século XIX, governos e fazendeiros intensificaram seus esforços para extinguir esses aldeamentos e expulsar os indígenas de suas terras. A violência e as invasões eram constantes, forçando muitos a abandonar seus lares e se tornarem “nômades vagando pelos sertões”.
Nesse cenário de desespero e marginalização, Canudos surgiu como uma “oportunidade de sobrevivência”. Lá, essas pessoas encontravam terra, o direito de praticar seus costumes e culturas, e o que os povos indígenas sempre valorizaram acima de tudo: a liberdade. Canudos era uma comunidade que prezava pela solidariedade e igualdade. A proximidade geográfica e as boas relações entre os povos indígenas da região e a população de Canudos foram cruciais. Além disso, muitos indígenas nutriam uma profunda simpatia e apego por Antonio Conselheiro, a quem carinhosamente chamavam de “Bom Jesus”.
É nesse contexto que se insere a fundamental participação indígena em Canudos. Muitos povos se uniram à luta, com destaque para os Kaimbé, Kiriri, Tuxá e Kantaruré, grupos que ainda hoje habitam essas regiões. Não há um número exato de indígenas mortos nos conflitos, mas as estimativas apontam para milhares. Registros indicam que pelo menos 500 guerreiros Kiriri tombaram. Após a queda de Canudos, a violência, perseguição e expulsão de suas terras se intensificaram para os povos indígenas da região, uma realidade que, infelizmente, eles enfrentaram desde a chegada dos colonizadores e que, de muitas formas, persiste até os dias atuais.
